domingo, 30 de novembro de 2008

José Saramago

Um Nobel na blogosfera
A idéia da qual parto ao considerar os blogs como um novo gênero textual encontra uma prova viva no escritor português José Saramago. Prêmio Nobel de Literatura, recebido em 1998 autor de livros consagrados, ele estreou um blog em setembro de 2008. "O Caderno de Saramago" http://caderno.josesaramago.org/) vem recebendo atualizações constantes do autor, que se destaca por ser não só um grande romancista e cronista, como também um intelectual engajado nas mais diversas questões sociais. Segundo reportagem publicada no blog Gaveta do Autor (http://gavetadoautor.wordpress.com/2008/09/16/jose-saramago-estreia-blog-na-internet/) o Caderno de Saramago” está disponível no site da Fundação Saramago e teve seu primeiro post em 15 de setembro deste ano, quando Saramago resgatou um texto sobre Lisboa.
Para apresentar a idéia do blog, Saramago — que, após se sentir perseguido pelos conservadores portugueses, mudou-se para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, que é território espanhol — produziu o seguinte texto, que transcrevo:
Quando em Fevereiro de 1993 nos instalámos em Lanzarote, conservando sempre a casa de Lisboa, meus cunhados María e Javier, que já ali viviam há alguns anos, junto a Luis y Juanjo, recém-chegados, ofereceram-me um caderno que deveria servir de registo dos nossos dias canários. Punham uma só condição: que de vez em quando fizesse menção das suas pessoas. Nunca escrevi nada no tal caderno, mas foi desta maneira, e não por outras vias, que nasceram os Cadernos de Lanzarote, que durante cinco anos veriam a luz. Hoje, sem esperar, encontro-me numa situação parecida. Desta vez, porém, as causas motoras são Pilar, Sérgio e Javier, que se ocupam do blog. Disseram-me que reservaram para mim um espaço no blog e que devo escrever para ele, o que for, comentários, reflexões, simples opiniões sobre isto e aquilo, enfim, o que vier a talhe de foice. Muito mais disciplinado do que frequentemente pareço, respondi-lhes que sim, senhor, que o faria desde que não me fosse exigida para este Caderno a assiduidade que a mim mesmo havia imposto nos outros. Portanto, pelo que isso possa valer, contem comigo.

Cumprindo o que prometeu, Saramago vem se mostrando assíduo no blog. Ao fazê-lo, está realizando literatura e jornalismo cultural na blogosfera. Minha avaliação é a de que não existe nada no blog que não possa ser publicado num livro de crônicas de Saramago. O que é o mesmo que dizer que, para mim, as qualidades do Saramago autor de blog são as mesmas do Saramago autor de crônicas, contos e romances. Lá estão todas as características que fizeram sua fama enquanto escritor.


* Categoria

O Caderno de Saramago pode ser incluído na categoria diário virtual, mas não é propriamente um diário confessional. Trata-se antes de um diário dedicado ao comentário político e de assuntos variados, inclusive os internacionais.
* Por que ler?
Afirmei acima que as qualidades do Saramago autor de blog são as mesmas, em essência, das qualidades do Saramago autor de crônicas, contos e romances. Lá estão todas as características que fizeram sua fama enquanto escritor, entre elas o texto em estilo direto e claro e um interesse muito geral por tudo. Ora, se Saramago merece ser lido como artista da palavra (e certamente ele o merece) também deve merecê-lo enquanto blogueiro. Pois seus temas e seus recursos estilísticos lá estão no blog, assim como estão nos livros. Entre esses temas e recursos estão as frases longas e o uso não convencional dos sinais gráficos de pontuação. Saramago, ao construir frases longas, nas quais troca os pontos finais pelas vírgulas, exige do leitor uma concentração maior e, como outros escritores modernos, abre-lhe uma janela para que veja outras possibilidades expressivas da Língua Portuguesa, da qual, aliás, é considerado o maior divulgador na atualidade. Isso pelo lado do estilo.
O conteúdo do que Saramago escreve em seu blog é tão interessante quanto seu estilo. O leitor encontrará no Caderno um intelectual atento a tudo o que acontece e disposto a "meter sua colher" em todos os assuntos que digam respeito a causas humanitárias. Pode-se discordar de seu ateísmo e de seu comunismo, mas é claro, mesmo para quem discorda, que Saramago constrói argumentos que merecem ser levados em conta. Já em idade avançada (nasceu em 1922 e tem, portanto, 86 anos), ele é admiravelmente plugado no mundo e, sobretudo, admiravelmente lúcido.

* Trechos:

O trecho abaixo mostra um exemplo do estilo engajado de Saramago e da aplicação dos valores e princípios que cultua.

Esperanças e utopias

Setembro 29, 2008


Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma equena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se neste nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias.

No trecho abaixo, muito interessante, Saramago usa o blog metalinguisticamente, ou seja, para falar da própria atividade de escrever, e dá o que pensar a todos os que fazem diários virtuais ao dizer que tudo merece ser registrado, pois tudo é humano e, portanto, digno.

Biografias

Setembro 22, 2008

Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel. Esta convicção de que tudo quanto dizemos e fazemos ao longo do tempo, mesmo parecendo desprovido de significado e importância, é, e não pode impedir-se de o ser, expressão biográfica, levou-me a sugerir um dia, com mais seriedade do que à primeira vista possa parecer, que todos os seres humanos deveriam deixar relatadas por escrito as suas vidas, e que esses milhares de milhões de volumes, quando começassem a não caber na Terra, seriam levados para a Lua. Isto significaria que a grande, a enorme, a gigantesca, a desmesurada, a imensa biblioteca do existir humano teria de ser dividida, primeiro, em duas partes, e logo, com o decorrer do tempo, em três, em quatro, ou mesmo em nove, na suposição de que nos oito restantes planetas do sistema solar, houvesse condições de ambiente tão benévolas que respeitassem a fragilidade do papel. Imagino que os relatos daquelas muitas vidas que, por serem simples e modestas, coubessem em apenas meia dúzia de folhas, ou ainda menos, seriam despachados para Plutão, o mais distante dos filhos do Sol, aonde de certeza raramente quereriam viajar os investigadores.
Decerto se levantariam problemas e dúvidas na hora de estabelecer e definir os critérios de composição das ditas “biobliotecas”. Seria indiscutível, por exemplo, que obras como os diários de Amiel, de Kafka ou de Virginia Woolf, a biografia de Samuel Johnson, a autobiografia de Cellini, as memórias de Casanova ou as confissões de Rousseau, a par de tantas outras de importância humana e literária semelhante, deveriam permanecer no planeta onde haviam sido escritas para que fossem testemunho da passagem por este mundo de homens e mulheres que, pelas boas ou más razões do que tinham vivido, deixaram um sinal, uma presença, uma influência que, tendo perdurado até hoje, continuarão a deixar marcadas as gerações vindouras. Os problemas surgiriam quando sobre a escolha do que deveria ficar ou enviar ao espaço exterior começassem a reflectir-se as inevitáveis valorações subjectivas, os preconceitos, os medos, os rancores antigos ou recentes, os perdões impossíveis, as justificações tardias, tudo o que na vida é assombração, desespero e agonia, enfim, a natureza humana. Creio que, afinal, o melhor será deixar as coisas como estão. Como a maior parte da melhores ideias, também esta minha é impraticável. Paciência.

sábado, 29 de novembro de 2008

Nemo Nox

Algumas palavras sobre o pioneiro
Comecemos esta página por um comentário sobre Nemo Nox, que foi o primeiro internauta do país a manter um weblog. Natural de Santos, ele vive nos Estados Unidos e edita ou participa da edição de vários blogs muito interessantes. Um deles é "Por um Punhado de Pixels" (http://www.nemonox.com/ppp), seu diário virtual para assuntos relacionados sobretudo ao cinema/TV, literatura e música. Segundo consta numa entrevista à ISTOÉ Gente (http://www.terra.com.br/istoegente/236/diversao_arte/internet.htm), da qual transcrevo abaixo alguns trechos, ele é também fotógrafo, diretor de comerciais e webdesigner. Em 2004, ainda de acordo com a revista, foi um dos cinco finalistas do prêmio Bloggies, na categoria melhor weblog latino-americano, com o seu "Por um Punhado de Pixels".
Diz o texto da entrevista que ele concedeu à ISTOÉ Gente:

O que fez seu blog ser selecionado?
Nemo Nox: É difícil dizer, especialmente numa categoria tão heterogênea, com weblogs em três idiomas (inglês, castelhano e português). Imagino que o comitê de seleção leve em consideração design, texto, temas abordados e freqüência de atualização, mas com 150 pessoas escolhendo os melhores weblogs dificilmente saberemos os critérios usados.
Como se sente sendo o único representante do idioma português no
prêmio?
Nemo Nox: É bacana, porque, apesar de já ter saído do Brasil há algum tempo, fiz questão de manter o weblog em português e também porque, quando falam em “latin american” aqui, o primeiro idioma que vem à mente é sempre o castelhano.
Sobre o que mais gosta de escrever?
Nemo Nox: No weblog escrevo sobre tudo, do último DVD que assisti a reclamações sobre a administração Bush. No Burburinho http://www.burburinho.com/), o webzine que mantenho desde 2001, o tema principal é cultura popular.
Foi um pioneiro dos blogs em português?
Nemo Nox: Meu primeiro weblog, Diário da Megalópole, foi criado em março de 1998. Estava de mudança para São Paulo e queria um espaço mais descompromissado para contar as minhas descobertas na cidade. A idéia de fazer isso em forma de diário me pareceu natural. Na época, não existiam ferramentas para criar weblogs automaticamente. Eu fazia tudo em HTML mesmo. Em fevereiro do mesmo ano, Viviane Menezes criou o White Noise, em inglês. Ela foi possivelmente a primeira brasileira a fazer um weblog, e eu possivelmente o primeiro a fazer um weblog em português.
* Categoria
A rigor, Nemo Nox trabalha seus weblogs em duas categorias: uma é o diário virtual (com um texto, repito, modelar) e a outra é a dos conteúdos de variedades (com ênfase em cultura popular).

* Por que ler?
Antes de mais nada, deve-se ler Nemo Nox pela qualidade do seu texto. Ele é, essencialmente, um escritor. Seu estilo reflete os valores da web moderna: é leve, fluido, direto, instigante, com uma capacidade de explicação didática admirável. Em segundo lugar, deve-se lê-lo porque ele tem um olhar sobre a cultura popular muito interessante. Cinema, TV, quadrinhos, música e literatura, entre outros assuntos, estão sempre na sua mira. Além disso, Nemo Nox tem veia jornalística: está sempre em busca de novidades. Embora ele não se sinta comprometido com a divulgação de tudo o que existe de novidade cultural no cenário norte-americano, acaba sendo um bom crítico, na medida em que comenta novas produções com uma admirável bagagem cultural. No Burburinho (http://www.burburinho.com/, seu fanzine na web, ele consegue extrapolar a cultura popular e faz, por exemplo, algumas considerações sobre a música clássica. Tudo, repita-se, com um texto elegante, simples e didático que se pode mesmo recomendar como modelo. Nemo Nox faz coisas interessantes porque é uma pessoa interessante.

* Trechos
Os posts abaixo, extraídos de "Por um Punhado de Pixels", mostram não só um adulto que consegue brincar (coisa rara, que também é exemplo, já que brincar é da essência da natureza humana sadia) e, ao mesmo tempo, ser bem humorado e sutilmente irônico, capaz de lançar sobre si mesmo um olhar humano.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008
[ 12:14 ]
Feriados são raros aqui nos EUA, feriadões
emendandos num fim-de-semana mais raros ainda. Um deles começa hoje, com o escritório fechando depois do almoço para dar início às comemorações de thanksgiving (ação de graças). Para mim, vão ser quatro dias e meio abrigado do frio dentro de casa assistindo televisão e jogando no Playstation 3.

[ 12:09 ]
Ontem completei meu tratamento dental. A boa notícia é que eu tenho seguro. A má notícia é que o custo do tratamento foi maior que o limite anual do seguro, que acabou cobrindo somente metade da conta. Sem o seguro, porém, teria sido mais barato entrar num avião, ir ao Brasil, fazer o tratamento todo lá, e voltar para cá depois de uns dia de férias.
No trecho abaixo, extraído do "Burburinho", Nemo Nox dá uma aula de como passar da cultura popular à erudita sem trocar de camisa.
O aprendiz de feiticeiro
Muita gente não sabe, mas o velho poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe tem a sua parcela de culpa no episódio em que o rato Mickey viu-se atrapalhado com uma série de vassouras voluntariosas. Na verdade, tudo começou bem antes, em pleno século II, com um diálogo escrito por um tal de Luciano. Mas foi somente muitas centenas de anos depois, em 1779, que a história do aprendiz de feiticeiro se popularizou, graças a um poema de Goethe. E mais de um século depois, o compositor francês Paul Dukas inspirou-se nela para compôr sua obra-prima, o poema sinfônico O Aprendiz de Feiticeiro. Que acabou fazendo parte da trilha sonora de Fantasia, desenho animado em longa-metragem dos estúdios Disney, onde todos nós vimos Mickey interpretando o aprendiz atrapalhado.